segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Batimentos

Imagem retirada da net

Naquele tempo era o centro das atenções de toda a gente de casa, a sala onde era rei e senhor tinha sido decorada com o intuito de me proporcionar destaque supremo.
No dia da minha chegada houve um grande banquete de apresentação. Por mim deslizaram dezenas de dedos, uns mais delicados que outros, uns mais suaves. Os vestidos que roçavam pelos meus pés. Tanto cuidado,tanta atenção. Ao longe uns olhos curiosos. Aquele olhar não me largou desde a chegada. Quem será? Porque não me teria vindo tocar?
Silêncio. Nenhum som a não ser o vento lá fora, as folhas que dançavam, deslizando, voando numa tarde de Outono. Os dedos passam suavemente por todas as teclas, todas as 85 teclas recebem um pequeno toque como se de um acordar se tratasse. Todos os "dó", "ré", "mi", "fá", "sol", "lá", "si", entrelaçam-se entre os sustenidos e bemóis, vibrando cada corda no seu som. Sorrateiramente, o menino do olhar foi-se chegando. Um dia, quando não estava ninguém na sala, senti o seu toque. Os olhos sorriam a cada contacto. Mãos suaves, dedos pequenos, magros, mãos de anjo que me acariciavam delicadamente a cauda,as teclas. Momento mágico, único, só nosso. Durante anos, as visitas tornaram-se mais assíduas. Momentos íntimos, só nossos! Aos poucos, as mãos foram-se tornando maiores, mãos de homem, mas o toque continuava angelical. As flores que brotavam na primavera, o mar amarelo das searas no verão, as folhas caindo no outono, e a chuva intensa no inverno, não igualavam os nossos momentos dentro daquela sala. Alguns anos depois as visitas foram rareando. Pouco a pouco fui deixado ao abandono. A sala já não era arajada todos os dias, nenhuma companhia, nenhum dedos acariciando as teclas, passando suavemente por todo o meu ser, pela minha alma musical. Certo dia, um dia cinzento, chuvoso, ele voltou para mim. As mãos que me tocaram estavam rugosas, ásperas, a sua agilidade lenta. Pequenas gotas caíam por cima das teclas. Não era a chuva que teimava em cair fortemente lá fora, eram lágrimas, lágrimas de compaixão, de saudade, de dor. Lentamente, o corpo desfaleceu e tombou por cima das teclas. Recordei o suave contacto do primeiro dia, o toque das mãos de anjo que me tocaram tantos e tantos anos. A vida é feita de lembranças, e hoje, aqui, nesta sala onde as janelas por vezes estão fechadas, onde os sorrisos e o toque musical rareia, onde as estações passam devagar demais, fechei "os olhos" e recordei as mãos de anjo que por mim passaram e me marcaram.

6 comentários:

  1. Simplesmente belo e profundo.

    beijinho e uma flor

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  2. Recordações musicais. Uma introspecção de grande beleza .

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  3. Entro no teu blog e pausadamente vou lendo o teu ultimo post. Para onde me levas com as tuas palavras? Belissimas palavras, carregadas de sentimento...não quero que a história termine...quero mais...
    Adorei esta "estória" como adoro todas as tuas historias

    Beijinhos

    Luis

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  4. Também tenho dessas "memórias", mas não as transporto para o papel com a eloquência e elegância com que a minha amiga o faz!

    Beijinho, C.!

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