NOTA: Peço desculpa aos leitores assíduos do "Delírios" por esta demora. Foi o capítulo mais dificil de escrever, pois estou a falar duma situação na qual não vivi, situações pelas quais não passei, e sendo uma situação real, não podia inventar. O resto é o delírio da minha alma.
(Continuação)
Ficou um calor intenso depois da tempestade. Um calor sufocante, que dificultava a respiração.
Fomos encaminhados para uns jipes. Por nós passavam dezenas de militares que tinham acabado a "comissão".
"-Vamos a despachar seus merdas! Agora é que vão ver o que é o inferno!"
Comentários que faziam voltar o meu olhar. Para que inferno me tinham enviado? Eu não pedi para vir para aqui. Os sorrisos estridentes, o olhar vazio, uma loucura o que nos aguardava. Por nós passavam jovens, muitos já nem sabiam o que ali estavam a fazer, feridos, muitos feridos. Esta imagem da nossa chegada, acompanhou-me durante meses.
Os Unimog iriam fazer o transporte em várias fases, pois cada um só levaria 11 homens de cada vez. Isso dar-me-ia alguma margem de manobra para ir ao "encontro". Teria que arranjar uma maneira de escapar sem Ana Maria dar por isso.
"-Que calor!"
"-Um calor insuportável, nada como em Lisboa."
"-Ana, queres água? Espera aí um pouco que já volto." E antes que ela dissesse algo, dei meia volta e segui.
Cheguei perto de um militar, e após lhe mostrar o envelope que me tinham entregue, ele mesmo fez questão de me levar à dita morada.
Poucos minutos de conversa foram os suficientes para entender que a minha "missão " em Angola era vigiar Ana Maria. Todas as semanas alguém iria ter comigo e teria que dar todas as informações do que ela tinha feito, com quem tinha falado.Enfim iria ser um "bufo".
As primeiras semanas passaram depressa, o nosso aquartelamento ficava na parte norte de Angola. Uma terra árida, vermelha, um calor intenso. Os tempos que não eram passados na actividade operacional, eram os mais livres, arranjar os telhados de zinco, as casernas, fazer fornos de pão, a aperfeiçoar os abrigos subterrâneos. Até aí as desconhecidas artes de engenharia eram postas à prova por vários soldados. Algumas vezes aplicavam-se algumas das técnicas aprendidas com os locais para fabrico de tijolos de adobe, tectos de colmo. Uma vez até de uma caixa velha de madeira, se fez uma câmara de televisão que deu para "filmar" um jogo de futebol e algumas reportagens para os familiares em Portugal. Pena ser tudo a fingir, mas deu para passar o tempo. Um dos momentos mais aguardados era a chegada do correio. Dezenas, centenas de soldados ansiosos por saber notícias de casa, outros para receber os aerogramas das "moças casadoiras". Havia quem tivesse duas ou mais, assim como os fieis com a moça do aerograma que diziam eles que era para casar. De vez em vez, Ana Maria recebia notícias da mãe. Nesses momentos, vinha chamar-me para lermos a carta juntos. Como ninguém me escrevia, este era o momento que mesmo sabendo que a carta era para ela, também eu a tinha como se fosse só para mim. O que eu desejava receber notícias dos meus pais, de alguém que escrevesse só para mim, só a pensar em mim.
Os momentos de combate eram os mais complicados.
Nunca tinha passado pela IAO (Intrução de Aperfeiçoamento Operacional), por isso tinha aprendido por mim a proteger a minha vida, a proteger a vida de Ana Maria. Era enfermeira, mas por vezes, rebelde como sempre fora, queria ir na coluna na picada. O pó que ficava a cada passagem dos veículos na época seca. Eram horas passadas na coluna, era aí que as conversas mais íntimas se faziam com o camarada do lado, se sabia o que se tinha deixado para trás. Era também nessas alturas que aconteciam emboscadas.
"-Ana, já cá estamos à quanto tempo?"
"-Quinze meses. Conto todos os dias e no fim agradeço a Deus o termos sobrevivido."
"-Olha que eu tenho visto a maneira como o Rodrigues olha para ti."
"-Estás armado em pai?" e deu uma gargalhada enorme."-Não te preocupes, sei cuidar de mim."
"-Calem-se!"
Ficámos em alerta, os nossos olhos, o nosso corpo, a G3, voltavam-se em todas as direcções. Saltámos do jipe e fomos seguindo, olhando em todas as direcções. Um primeiro rebentamento de mina, fez-nos deitar ao chão, de seguida, soaram rajadas de tiros de todas as direcções. Arrastámo-nos pelo chão, tentando encontrar algo que nos abrigasse. Ana Maria seguia a meu lado, o seu olhar denotava medo.
"-Tenho que ver se alguém precisa de ajuda."
"-Agora não! Fica a meu lado! É uma ordem!"
Quando chegámos perto da mata que nos circundava, os tiros pareceram acalmar. Ouvia-se gemidos, gritos de dor. Eram homens, soldados, camaradas, amigos nossos que ali estavam. Com a vida suspensa e nós sem podermos fazer nada. Do sítio onde estávamos, vimos um camarada. Estava imóvel, não sabia se estava morto, se estava vivo. Rastejámos mais um pouco até chegar a ele. Já nada havia a fazer!
Comecei a chorar. Não era a primeira vez que chorava em alturas de emboscadas. Sim tinha medo! Quem não tinha? Olhei para Ana Maria. Também ela chorava. Pressentimos que alguma coisa má estaria prestes a acontecer. Senti a mão de Ana segurar a minha, fortemente.
"-José, irei amar-te sempre!"
"-Ana, também te amo!"
Ela chegou perto de mim, beijou-me. Correspondi. Era um beijo! Mas um beijo que de verdadeiro amor nada tinha. Um amor de amizade que sempre sentimos um pelo outro.
Ao longe ouvia-se o som dos helicopteros. Já estava a chegar a nossa ajuda. Iria tudo correr bem.
Começaram a ouvir-se de novos tiros vindos de todos os lados. Os nossos camaradas ripostavam e as coisas acalmaram. Ajudámos a levar os feridos para os helis.
"-Ana vais com este grupo!"
"-José fico aqui a ajudar-te."
"-Nada disso! Vais!"
Quando entrou o último ferido, empurrei Ana para dentro do heli. Ela sorriu.
"-Sim, papá vou já. E ainda bem pois o Rodrigues também vai." sorriu.
Antes da porta fechar-se, Ana voltou-se para me fazer adeus. Nesse momento um tiro furtivo, acerta em Ana Maria. O seu corpo é atirado ao chão. Corro na sua direcção.
"-Ana estou aqui. Não digas nada. Estou aqui!"
Ana olha para mim. Do seu corpo o sangue escorre sem parar. O seu olhos marejados de lágrimas, a sua respiração ofegante no início, quase se deixou de ouvir.
Entro para o heli, e a porta corre atrás de mim para se fechar. Levantamos voo.
"-Rápido!"
Encosto a minha cabeça à de Ana e assim me deixo ficar.
"-José!"
"-Sim estou aqui, não digas nada!"
"-Protege a minha mãe. Diz-lhe que a amo muito."
"-Sim vou dizer e a teu lado."
"-José vive por mim, por aquilo que acredito, sê feliz!"
"-Ana, não te canses. Já falamos."
Senti a sua mão apertar fortemente a minha. Olhei para Ana e vi o seu olhar despedir-se de mim.
O meu coração ficou tão apertado, o meu olhar triste não deixava de ver Ana por um segundo sequer. Aos poucos o seu corpo deixou de batalhar pela vida, o seu olhar, foi ficando vazio, parado.
Não podia ser, não podia ser. Não a Ana.
O Dr. Vasco tentou fazer a reanimação, mas já não havia nada a fazer.
Ana Maria tinha morrido.
(continua)