segunda-feira, 25 de julho de 2011

Um Delírio XVII

Tomás da Assunção
Vista da Penha de França - 1857


(continuação)

Pela primeira vez em toda a minha vida, sentia-me desconfortável. Estar ali, na presença daquela criança, mexeu comigo, com o meu ser, com o meu íntimo.
Nem mesmo, quando sofrera o maior desgosto de amor. O qual me fez ingressar numa guerra que não era minha, viver uma vida de dor, mágoa, morte, passar os maiores horrores. Horrores esses que me acompanhariam por toda a vida.
"-Obrigado."
Meu Deus até a sua voz, era voz de anjo. Um anjo que me protegeu, me encaminhou a casa. O anjo com o qual sonhei mais de 5 anos.
Saíra de Portugal há alguns anos. Um pouco afugentado por um desgosto amoroso. Pensara eu que a fuga seria libertadora e no fim foi mais uma prisão eterna.
Quando era moço, tinha como pretendente a casamento, uma moça da aldeia vizinha. Casamento já combinado entre as nossas famílias. Era uma moça bonita, robusta, uma moça do campo. De manhã, acordava a pensar nela, passava o dia a suspirar por ela e à tardinha quando a ia visitar, o meu coração quase que saltava pela boca. As mãos tremiam, a voz saía um pouco atabalhoada. Nada saía como devia ser e ela sorria. Pensava eu que sorria da minha atrapalhação que eu dizia que com o tempo passaria, que eu não era assim, ficava assim perto dela.
Todo o final do mês, metade do dinheiro que recebia da vida agrária, entregava ao pai dela, que aos poucos nos ia construindo a casa que um dia seria nossa. As nossas mães entretinham-se nos dias de feira a comprar os tecidos mais bonitos, as rendas mais bonitas para compor o enxoval.
Os meses foram passando.
Certa tarde de verão, perto do dia do nosso casamento, e como já tínhamos "ordem" para passear um pouco pela aldeia, fiquei mais à vontade e quando nos íamos a despedir, "roubei-lhe" um beijo. Ela fugiu para casa. Tentei falar com ela, pedir desculpa pelo sucedido. Não sabia se tinha ficado ofendida comigo. Afinal dali a um mês íamos casar.
Durante uma semana não soube nada dela. O pai dela veio a minha casa e disse que ela estava doente. Já tinham ido ao médico, não era nada grave, mas precisava repousar.
Fiquei preocupado. Teria sido o beijo que a tinha posto doente??
O dia amanheceu cinzento.
Dias antes, tinha visto chegar à loja do sr. Janeiro, uma peça de chita. A mais bonita que tinha visto até então. Resolvi logo ir comprar um pedaço para oferecer à minha noiva. Podia ser que ela quisesse falar comigo e assim saberia se já estava melhor.
O embrulho debaixo do braço, deixava todas as moças da aldeia a olhar a pensar no que levaria ali. Os homens cochichavam à minha passagem. Naquele dia sentia-me um homem importante.
No caminho para casa da minha amada, começou a chover. Uma chuva miudinha no inicio, passou a tormenta em poucos minutos.
Ao passar pelo moinho abandonado, ouvi vozes. Ao início não consegui perceber quem eram. Sorriam, falavam baixo, mas houve um barulho mais imperceptível que fez com que me aproximasse. Uma respiração ofegante! Duas respirações ofegantes!
Entreabri a porta e vislumbrei dois corpos deitados, despidos. Entrelaçavam-se braços, pernas. Um homem e uma mulher, sem dúvida.
Ali estava um casal em pleno acto amoroso.
Fiquei envergonhado por ter observado um acto íntimo na vida de um casal. Tentei sair sem que percebessem a minha presença. Ao tentar sair, nem reparei que a porta se tinha fechado e bati nela com toda a força. Senti as duas pessoas a olhar para mim, e quando entreabri os olhos fiquei petrificado, paralisado. O meu corpo, o meu ser, a minha alma, o meu coração morreu naquele momento.
Com o cabelo desalinhado, as faces ruborescidas, o corpo suado, ali estava a minha noiva. A noiva que eu pensava doente. A noiva a quem tinha comprado um peça de chita lindíssima. A noiva a quem prometi amar toda a vida. Entregar-lhe a minha vida, o meu amor e ela ali estava a entregar-se a outro.
Abri a porta e saí. Corri, corri. A chuva molhava o meu corpo. As lágrimas molhavam a minha alma. Parei perto do riacho, o meu riacho e gritei até não poder mais, até a voz já não conseguir sair. Fechei os olhos. Naquele momento o meu ser acalmou, senti uma paz imensa. A dor que sentia, passou. A olhar para mim, encontrava-se uma criança. Abri os olhos e não vi ninguém.

(continua)

10 comentários:

  1. Querida
    Belissimo.
    Fico impaciênte esperando essas continuação.
    Beijinho fofo

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  2. Flor de Jasmim.
    Do que estava inicialmente previsto já há 3 dias, não saiu nada do que estava a pensar.
    Hoje peguei e foi escrever, tentar ser mais rápido do que o pensamento, eheheheh

    Beijinho para uma flor e um folha ehehehe

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  3. Olha, valeu a falta de inspiração, o negócio voltou uma coisa de bom.
    Neste momento acompanho quase perto do riacho. É pra não desconfiarem.


    5 bjs cara Carlota - a escritora das orquídeas azuis

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  4. Estimada Comadre Carlota,
    Este maravilhoso capítulo desta estória, me bateu bem fundo no coração, e me fez regressar atrás no tempo, algo igual se passou comigo.
    Não a vi praticar essa relação in loco, mas me contaram, encontrava-me em Macau, tinhamos já tudo preparado para quando do meu regresso a Portugal nos casariamos.
    Muito a ajudei e amei, porém a paga foi essa, motivo esse que me levou a ficar aqui bem longe do local onde conheci o meu primeiro amor.
    Adorei o romance e aguardo com ansiedade o desfeixo do mesmo.
    Abraço amigo

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  5. Continue a delirar, Carlota.
    A gente agradece.
    Bjs

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  6. Cozinha dos Vurdóns.
    Este estava complicado de sair.
    É complicado escrever sobre uma altura que não vivi, falar sobre uma guerra que não passei. Muita pesquisa, é o que sido feito nos últimos dias.

    5 estrelas brilhantes
    5 beijos carinhosos

    PS: Gostei das orquídeas azuis eheheh

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  7. Caro Compadre.
    Tem que tomar conta do coração, olhe que não vai ao Tibete. Não foi minha intenção inventar uma história que afinal é parecida com a sua história de vida.
    Espero que não esteja triste com estas recordações, senão tenho 12 abraços orientais à volta do meu pescoço eheheheheh.
    Beijinhos

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  8. Estimada Comadre Carlota,
    Não fiquei triste, simplesmente recordei uma passagem de vida, passagem essa que esqueci, visto novas passagens foram e tem sido bem melhores.
    É verdade não poderei ir ao Tibete, mas penso poderei ir à Tailândia dentro de um mês.
    13 abraços amigos e bem orientais.

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  9. Caro Compadre.
    Mas fi-lo recordar algo já esquecido e que o magoa.
    Ainda bem que o Oriente curou as feridas.

    !3 abraços!!!

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