segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Um Delírio...

Charles Perugini

Os olhos vincados por uma noite mal dormida, fazem adivinhar um dia cansativo.
O corpo doído puxa-a da cama.
Recorda a noite que passou com enorme mágoa.
Os filhos já deitados, não assitiram ao início.
Fora deitá-los cedo. Aconchegou-os na cama e deu-lhes um beijo de boas noites. Sorriu ao ouvir o mais novo dizer "Mãe, gosto muito de ti!". O mais velho também disse algo, que a sonolência já não deixou decifrar. O do meio, mais acanhado, simplesmente sorriu. Beijou-os, afagou-lhes o cabelo, acendeu a luz de presença e encostou a porta.
Recostou-se na cama e folheou o livro que começara a ler horas antes. Só neste silêncio conseguia ler. Viver os seus sonhos, os seus desejos. Quantas vezes encarnava as heroínas, as vilãs. Quantas paixões, amantes terá tido? Nem se lembra. Fora tantos os livros que lera desde nova, que já não tinham conta.
Casara cedo. Os pais, homens do campo arranjaram-lhe pretendente cedo. Não queriam morrer sem deixar a sua menina entregue a alguém que cuidasse dela, quando eles tivessem partido.
José homem trabalhador, o filho dos vizinhos foi a escolha. Nem a diferença de idades foi obstáculo a tal união.
Maria tinha 15 anos quando casou e José tinha 40. No início, tratava-a bem. O seu corpo franzino fora seu cúmplice durante os primeiros anos de casada. José só a procurava uma vez por mês e era tão meigo, tão delicado, tão atencioso.
Aprendera a vida de lavoura com o marido. De madrugada, acordavam e enquanto ele tratava do farnel, ela dava um jeito na casa. Não gostava de deixar a casa desarrumada. Seguiam por uma vereda junto ao cercado do campo, acompanhando a rotação de culturas. Ela tratava dos cultivos, ele dos animais. Juntavam-se à hora de almoço, e ele quando chegava trazia sempre uma flor, que lhe entregava depois de a beijar. Ela corava, sorria.
Os anos foram passando. José já a procurava mais amiúde. O seu corpo franzino, dera lugar a um corpo formoso, e nem os filhos lhe tiraram esbelta figura.
Todos os meses passava pela aldeia a carrinha da Biblioteca. O ritual era o mesmo todos os meses, desde que aprendera a ler. Acordava cedo, vestia o seu melhor fato (não queria que o bibliotecário a visse como mais uma coitada da aldeia), pegava na sacola onde guardava os livros e lá ia percorrendo os poucos quilómetros até à aldeia. Com a chegada dos filhos, José queria mudar para mais perto da aldeia, mas ela gostava do sítio onde moravam. Um vale, com inúmeras árvores e onde passava um riacho. O sítio ideal para viver e sonhar. Com o passar dos anos, tornara-se amiga do Sr. Meireles. Ele guardava-lhe todos os livros da sua preferência e deixava-a trazer sempre mais do que o estabelecido. Ele sabia que ela os lia e tratava bem, como se de filhos se tratassem.
O marido ao início não se importava com a demora. Como não lhe podia dar mais, deixava-a entregue à sua leitura, pois sabia que a fazia feliz.

(continua)

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